LITERATURA

Escritora Ana Guadalupe fala sobre o processo da tradução, a IA na literatura e mais

Tradutora de mais de 40 títulos, incluindo sucessos de Sylvia Plath, Kazuo Ishiguro e Rupi Kaur, lançará livro de poesias em 2026.

Escritora Ana Guadalupe fala sobre o processo da tradução, a IA na literatura e mais
Formada em Letras pela Universidade Estadual de Maringá (UEM), Ana Guadalupe é tradutora e poeta, com três livros já publicados. - Foto: Fernanda Valois

Leitores da língua portuguesa, ao abrir a primeira página de uma nova aventura literária, já podem ter se deparado com as seguintes frases: “Mrs. Dalloway disse que ela mesma iria comprar as flores” ou “Todas as famílias felizes são parecidas, cada família infeliz é infeliz ao seu próprio modo”.

Duas primeiras frases de grandes romances da literatura mundial, marcantes em inglês e russo, mas que também têm impacto em português graças às escolhas de tradução de Claudio Alves Marcondes, na edição da Penguin Companhia de ‘Mrs. Dolloway’, e Irineu Franco Perpétuo, tradutor de ‘Anna Kariênina’ para a Editora 34.

Nenhuma obra em língua estrangeira é passada para o nosso português sem o processo fundamental da tradução literária. Um trabalho subjetivo, não muito notado pelos leitores, mas que torna qualquer obra um trabalho feito a muitas mãos: as do autor que concebeu a história e as de quem a traduziu.

Formada em Letras pela Universidade Estadual de Maringá (UEM), Ana Guadalupe já trouxe para o português livros como o clássico ‘A Redoma de Vidro, de Sylvia Plath; ‘Klara e o Sol’, do ganhador do prêmio Nobel de literatura Kazuo Ishiguro; e ‘Ao Paraíso’, best-seller do New York Times escrito por Hanya Yanagihara.

“A tradução me deu mais paciência, mais disciplina e principalmente conhecimentos que eu não teria encontrado por outras vias”, explicou por e-mail ao Maringa.Com

Além de tradutora, Ana também é poeta com três livros já publicados ('Relógio de Pulso', ‘Não Conheço Ninguém Que Não Seja Artista’ e ‘Preocupações’). O próximo sai ano que vem, inspirado na tradução e nos anos que viveu em Buenos Aires.

Abaixo, confira nossa entrevista na íntegra:

Maringa.Com: A tradução literária tem um caráter quase fantasmagórico e muitas vezes é entendida como, simplesmente, a tradução literal das palavras. Como você define e encara esse ofício?
Ana Guadalupe: Encaro a tradução literária como um jogo, uma espécie de quebra-cabeça, em que o texto vai se abrindo aos poucos e você vai decifrando o segredo de uma obra. Essa sensação sempre se repete.

Em 'Viver e Traduzir', Laura Wittner (traduzida por Maria Cecília Brandi e Paloma Vidal) explica que "metade das buscas relacionadas a uma tradução nos leva a um lugar que não procurávamos, mas que, no entanto, nos é muito próximo". Para quais caminhos inesperados a tradução já te levou?
É verdade que a pesquisa é muito importante, uma "segunda aba" constante no processo de tradução. Eu não me considero uma grande pesquisadora, sou um pouco afobada, mas a tradução me deu mais paciência, mais disciplina e principalmente conhecimentos que eu não teria encontrado por outras vias.

Como você mergulha em um novo livro a ser traduzido? Procura inspiração em livros, filmes, séries, música? Em outras obras do mesmo autor traduzidas por outras pessoas?
O que sinto que faz mais diferença é o contato com o texto, mesmo. E às vezes o texto aponta pra outros lugares, cita outras fontes, menciona cidades, etc. Em alguns trabalhos busquei ler outros livros, ou no original ou traduzidos, do mesmo autor, mas em geral tento estar atenta ao texto.

Como o processo da tradução alimenta e interfere em sua escrita?
Senti que traduzir me deu um olhar mais atento e mais "treinado". Hoje em dia, quando escrevo, sinto que tenho mais controle das diferentes maneiras de dizer a mesma coisa, por exemplo. Acho que esse "antes e depois" é visível nas coisas que escrevo.

Entre as dezenas de obras que já traduziu, estão alguns livros muito conhecidos e amplamente lidos. Alguns já chegam ao Brasil com leitores ávidos esperando pela tradução. Tem algum trabalho que te intimida mais? A popularidade da Rupi Kaur ou o tamanho dos calhamaços da Hanya Yanagihara, por exemplo?
Sim, tem trabalhos que intimidam bem mais. Os autores mais conhecidos com certeza têm esse efeito. Senti isso principalmente quando traduzi o Kazuo Ishiguro e a Sylvia Plath. Mas também tem alguns trabalhos que comecei sem grandes pressões e passaram a intimidar depois, quando percebi a complexidade do texto. Isso aconteceu com ‘Caixa 19’, da Claire Louise-Bennett, por exemplo.


Um dos inúmeros defeitos da inteligência artificial é a falta de caráter humano e a subjetividade necessárias para uma boa tradução. No entanto, em relação à língua portuguesa, você considera as traduções feitas com IA uma ameaça ao idioma escrito e falado no Brasil?
Não considero necessariamente uma ameaça ao idioma, mas sim, a tradução feita por inteligência artificial já é uma ameaça ao trabalho de quem traduz. Já tínhamos um mercado cheio de complexidades, e agora adicionamos mais essa. Ao mesmo tempo quero acreditar, sim, que principalmente a tradução literária vai continuar exigindo essa subjetividade do ser humano, uma capacidade de conciliar mais camadas de sentido e até um elemento inconsciente.

O manifesto do coletivo Quem Traduziu expõe as condições de trabalho adversas que os tradutores enfrentam no Brasil. A impressão que tive lendo as reivindicações é que mesmo quem, supostamente, deve entender do assunto — o mercado editorial — encara a tradução como um 'copia e cola' em uma língua diferente e não valoriza o trabalho como algo totalmente novo e que pertence também a quem traduziu. Quais desafios você já encarou nessa profissão?
Não acho que o mercado editorial brasileiro encare a tradução como um "copia e cola", mas sim, a gente ainda lida com muitos desafios. A remuneração poderia ser melhor. Até pouco tempo atrás as editoras e os veículos que divulgavam os livros sequer mencionavam a pessoa que tinha traduzido, era como se o livro se traduzisse sozinho -- isso parece estar mudando aos poucos. Quase não se fala em pagamento de royalties, como se faz em outros países. Eu já vivi todas essas questões, e logo percebi que viver só de tradução é muito difícil. A maioria dos profissionais da área precisa ter outras fontes de renda pra pagar as contas. Também é um trabalho que exige muita energia e muita concentração, porque o volume costuma ser muito grande.

O que você pode adiantar sobre o seu novo livro de poesias, que será lançado ano que vem?
Acho que é um livro em que me arrisquei mais do que nos livros anteriores, tanto na forma quanto no conteúdo. E vejo dois pontos que foram centrais nessa mudança: a tradução literária é um deles, outro é o fato de eu ter morado quase quatro anos em Buenos Aires, onde aprendi a falar uma língua nova.

Maringa.Com
Por Vanessa Santa Rosa