No barracão localizado nos fundos da Pedreira Municipal mãos ágeis trabalham na separação de recicláveis. São cooperados da Coopervidros à procura de itens de vidros, em especial garrafas, que sirvam de matéria-prima ao setor industrial. “Garrafas são vendidas como peças, então rendem mais. Já vidraças e espelhos, por exemplo, precisam ser triturados e valem menos”, explica a presidente da cooperativa, Dulcinéia Martins da Silva.As cerca de cem toneladas separadas mensalmente têm destino certo. Sem mercado na cidade, são enviadas para uma empresa em São Paulo e lá transformadas em embalagens de vidro destinadas às indústrias de bebidas alcoólicas e alimentos. O transporte do material é responsabilidade da cooperativa, cláusula no contrato que garante a rentabilidade do produto. “Pagamos o frete porque senão o valor cai muito”, justifica Dulcinéia. Ela diz que o compromisso com o transporte foi um dos motivos que inviabilizou o contrato da cooperativa com uma empresa do Rio de Janeiro. O rigor imposto à qualidade do vidro reciclado também dificultou o negócio. “A empresa era exigente em relação aos vidros não estarem contaminados. E dada a situação do material que chega até nós, é bem complicado. Infelizmente as pessoas ainda não têm o hábito de fazer a separação do lixo em casa”.Outra dificuldade é o baixo volume do material proveniente da coleta seletiva realizada pela administração pública. Na tentativa de driblar a escassez, a cooperativa adquiriu, com recursos próprios, um caminhão para reforçar a coleta e firmou parcerias com bares, lanchonetes e restaurantes da cidade. Por enquanto são seis pontos de recolhimento e outros atendimentos esporádicos.Ainda assim, segundo a presidente, não raro a Coopervidros sofre cobranças da indústria paulista por uma produção maior. “Cem toneladas são o mínimo previsto no contrato. Poderíamos vender de 500 até mil toneladas se tivéssemos material, mas infelizmente não temos”, lamenta Dulcinéia, acrescentando que há mão de obra disponível. “Hoje somos em 19 cooperados, mas poderíamos empregar 50”. Em média, a renda mensal do cooperado é de R$ 1,5 mil.A Coopervidros é um dos oito empreendimentos em Maringá – seis cooperativas singulares, uma cooperativa de segundo grau e uma associação – a fazer um trabalho crucial: devolver ao processo produtivo o que é considerado lixo.O Brasil produz 78,4 milhões de toneladas de resíduos sólidos urbanos por ano, segundo a Associação Brasileira de Resíduos Sólidos no Brasil (Abrelpe). Esse acúmulo de produtos descartados – alguns de forma inadequada – evidencia um dos grandes problemas da economia linear. Caracterizado pela extração, fabricação, consumo e descarte de bens de consumo em lixões e aterros, esse modelo econômico é apontado como um dos grandes responsáveis pela atual degradação ambiental.Contrapondo a esse conceito de fim da vida surge a economia circular, propagando a ideia de que tudo o que produzimos pode voltar para a produção em vez de virar lixo. Nessa economia, nada é desperdiçado. Tudo deve passar por reaproveitamento, transformação e reciclagem.“Economia circular trata-se de um conceito ‘guarda-chuva’ que foi abraçando diversas teorias. Embora pareça nova, é uma ideia que vem sendo desenvolvida desde a década de 1970”, explica o advogado especializado em Direito Ambiental, Rogel Martins Barbosa, que é ex-presidente do Conselho Municipal de Meio Ambiente. “Naquela época já se argumentava sobre prolongar a vida útil de bens de consumo e discutia-se a questão do desperdício inerente à produção de produtos em vez de consertá-los”, completa.Essas questões foram abordadas no relatório de Walter Stahel e Geneviève Reday-Mulvey, em 1976, nomeado ‘O potencial de substituição de mão de obra por energia’ para a Comissão de Energia das Comunidades Europeias’. O documento é considerado o primeiro marco teórico da economia circular.Depois disso, o tema ganhou capítulos em artigos e livros. Destaque para as obras ‘Berço ao berço: refazendo a maneira como fazemos as coisas’, publicado por William McDonough em 2002, e a ‘A economia azul: 10 anos – 100 inovações – 100 milhões de empregos’, de Gunter Pauli, de 2010.“Em sua obra, McDonough contrapõe as economias circular e linear por meio das ideias de berço ao túmulo. Ele contesta o conceito de fim da vida e defende a redução, reutilização e recuperação de energia”, destaca o advogado.Esse conceito ganhou visibilidade em 2010, quando Ellen MacArthur, a famosa velejadora que, em 2005, bateu o recorde de navegação solitária sem escalas à volta do mundo, criou a Fundação Ellen MacArthur. Dois anos depois da fundação, a instituição publicou o relatório ‘Rumo à economia circular: racionalidade econômica e de negócios para uma transição acelerada’ e hoje atua como catalisadora desse modelo econômico.
Da teoria à práticaA economia circular estimula o equilíbrio entre os impactos ambientais e a vantagem financeira da produção de um produto. Seu objetivo é maximizar a eficiência dos recursos, criando um sistema onde não existe resíduo, mantendo a qualidade e potencial econômico do produto. “Muitos se perguntam quando vamos realmente solucionar o problema do resíduo. Isso acontecerá quando o resíduo deixar de ser resíduo e entrar numa cadeia econômica. Neste momento a economia circular começa a ser interessante”, afirma o advogado.E como isso ocorre na prática? De acordo com o advogado, o processo começa com a escolha da matéria-prima. “Tem que ser um material amigável ao meio ambiente”, destaca Barbosa.O passo seguinte é ‘desenhar’ o processo de forma que haja utilizações secundárias e terciárias, e com a necessidade de menos gasto de energia. Aliás, o gasto de energia é uma preocupação neste modelo econômico. Tanto que a reciclagem não está no topo da lista de prioridades, ocupa apenas a terceira posição. A primeira meta é não produzir o resíduo e depois reduzir o volume produzido.Apesar dos avanços, a economia circular patina para ganhar o mundo. E uma das explicações é a diferença dos problemas dos países industrializados, como na Europa e na América do Norte, e dos em desenvolvimento. Os segundos têm escassez de recursos, incluindo bens, habilidades e alimentos. Em situações de escassez, a melhor estratégia é a produção em massa para elevar a qualidade de vida da população.Outro ponto é a dificuldade de externalizar o curso do risco e do desperdício dentro da economia circular. “Isso não é possível porque o produto é feito para não ser desperdiçado. Na economia linear é possível externalizar o custo, repassar para terceiros e obter uma maior margem de lucro”, explica Barbosa.
Pioneira da reciclagemEm Maringá, há exemplos de adeptos da economia circular. Um deles é a Eletroflex, que transforma o plástico reciclado em mangueiras. “Fomos a primeira indústria de reciclagem de plásticos da cidade. Na nossa mão o ‘lixo’ que seria disposto no meio ambiente vira produto nobre”, orgulha-se o fundador da empresa Cláudio Luiz Abeche.Inaugurada em 1987, a Eletroflex começou alternando a reciclagem e a fabricação de mangueiras lisas. Mas com a evolução do mercado, o portfólio foi diversificado. Hoje o carro-chefe são as mangueiras de polietileno usadas para transporte de água. Cinquenta toneladas são produzidas mensalmente no barracão que fica na Zona 6.A lista de produtos inclui ainda eletrodutos corrugados, tubos isoladores para cerca elétrica, mangueiras para irrigação e até produtos para acabamento de móveis, como o cipó sintético. Tudo com selo de 100% reciclado. Os produtos são comercializados em vários estados brasileiros, do Rio Grande do Sul ao Acre.
Uma parcela da matéria-prima vem das cooperativas de recicladores da cidade. A quantidade, no entanto, é insuficiente para atender a demanda. O maior volume de material é adquirido de empresas especializadas na coleta de recicláveis.A qualidade do plástico reciclado é uma das preocupações de Abeche, engenheiro químico de formação. Ele sabe que disso depende a durabilidade do produto, atualmente estimada em 70 anos, e principalmente a aceitação do consumidor. “No início havia certa resistência das pessoas com produtos reciclados, porque muitos não eram de boa qualidade. Porém, hoje a realidade é outra. Nossas mangueiras são de alta qualidade e usadas com total segurança. Hoje também existe uma propaganda ostensiva que tornou a reciclagem atrativa aos olhos da população”, afirma.Além de durável e ‘amiga’ do meio ambiente, as mangueiras da Eletroflex são mais baratas do que as produzidas com plástico virgem. De acordo com Abeche, a explicação está no custo da matéria-prima e no processo produtivo. “O preço final do reciclado é praticamente a metade”.O empresário vê com otimismo o avanço da economia circular. Na opinião dele as indústrias estão entendendo a necessidade de preservar os recursos naturais e adaptando as linhas de produção ao conceito de reduzir, reaproveitar e reciclar. “Fala-se que precisamos resolver o problema de destinação do lixo, mas é preciso ação e cada um deve fazer a sua parte. É isso que prega a economia circular: a conscientização sobre a importância de dar vida nova a um produto que chegou ao fim”, conclui.
Do campo à indústriaNa Cimflex a matéria-prima também é o plástico reciclado, só que ele vem do campo. A empresa é uma das 11 recicladoras parceiras do Sistema Campo Limpo, o programa nacional de logística reversa de embalagens de defensivos agrícolas. Por lei, os produtores rurais têm a obrigação de devolver as embalagens vazias em mais de 400 pontos de coleta espalhados pelo país.De acordo com o Instituto Nacional de Processamento de Embalagens Vazias (Inpev), 94% das embalagens plásticas de defensivos agrícolas comercializadas no Brasil são recolhidas pelo instituto e encaminhadas às recicladoras. Do total recolhido, 91% têm condição de ser reciclado – o restante é incinerado. Todo material coleta do é rastreado desde a origem à destinação final.“O Brasil é referência mundial no processo de descarte correto desse tipo de embalagem”, comemora o empresário Ricardo Jamil Hajaj, da Cimflex. Ele é um dos precursores desse movimento. Em 1992, na condição de proprietário de uma empresa que chegou a ser líder de mercado na fabricação de embalagem de agrotóxico, ele procurou a Associação Nacional dos Produtores de Defensivos Agrícolas em busca de uma solução que reduzisse os impactos ambientais.“Sabíamos dos riscos que a destinação e a reutilização inadequadas representavam ao meio ambiente. No passado os agricultores reaproveitavam as embalagens para guardar água e até leite ou as enterravam na propriedade. Estavam enterrando dinheiro, riqueza”, comenta o empresário. “Em 2002 iniciamos a gestão dessas embalagens com a criação de um sistema de reciclagem. Foi aí que surgiu o Inpev, até hoje responsável pela coleta”.E foi a convite do Inpev que Hajaj decidiu se tornar um reciclador e, em 2004, abriu a Cimflex. Para tanto, trocou Londrina por Maringá para ficar próximo à Cocamar, cooperativa que, à época, mais recolhia embalagem no Paraná. Tempos depois ele vendeu a fábrica em Londrina para uma empresa norte-americana e adquiriu mais uma recicladora em São Paulo.Hoje dedica-se à reciclagem de parte do material recolhido pelo Inpev tanto na unidade maringaense quanto na paulista. Na linha de produção das indústrias, o plástico rígido coletado pelo instituto é reaproveitado em novas embalagens de agroquímicos e lubrificantes. Parte também é usada na fabricação de eletrodutos. Em média, a Cimflex transforma e dá a destinação adequada a três mil toneladas por ano.Antes, no entanto, as embalagens passam por limpeza e seleção. O processo de descontaminação começa na propriedade rural com a lavagem das embalagens e continua nas centrais de recolhimento onde são novamente lavadas e depois selecionadas, classificadas e prensadas. De lá, são direcionadas para os parceiros recicladores.“Somos o único do Paraná a fazer a reciclagem de uma determinada categoria de plástico. Estamos gerando postos de trabalho e impostos e ao mesmo tempo ajudando o meio ambiente”, destaca o empresário. Hajaj também comemora a melhora da imagem do plástico reciclado. Antes visto com desconfiança pelo consumidor, agora o produto tem a qualidade reconhecida. Ele ressalta, no entanto, que isso depende da preparação da matéria-prima, que inicia com uma coleta eficiente e um criterioso trabalho de separação. É preciso seguir regras para evitar a contaminação dos produtos uma vez que há sete ‘famílias’ de plástico e cada uma tem sua finalidade. Tarefa bastante complicada especialmente para as cooperativas de recicladores que não dispõem de mão de obra suficiente e nem tecnologia. Outra barreira ao avanço da reciclagem é a falta de incentivo por meio de políticas públicas e benefícios fiscais e tributários. “Precisamos fazer do lixo um produto novo. Tecnologia para isso tem e as grandes empresas estão comprando a ideia de usar material reciclado. Também estamos quebrando a resistência e o medo de contaminação por parte do consumidor. Mas precisamos de apoio e benefícios, principalmente quando se fala de reciclagem de plástico, que é feita, em sua maioria, por pequenas empresas”, conclui.
Sem rastros de lixoNão só na reutilização de recicláveis há um campo de oportunidades promissor na economia circular. Também atrativos são os negócios que ajudam empresas a lidar com o desafio de arcar com a responsabilidade de limpar o rastro do lixo que seus produtos e serviços deixam para trás. Embora fora da lista de obrigatoriedade de logística reversa prevista pela Política Nacional de Resíduos Sólidos, o chamado lixo hospitalar tem regras de descarte previstas em legislações específicas, como a Resolução 358 do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama). Já no âmbito estadual, as secretarias de Meio Ambiente e Saúde estabelecem diretrizes para planos de gerenciamento também por meio de resolução.É aí que entra o Grupo Servioeste, cuja matriz fica em Santa Catarina, mas que conta com mais de 15 mil clientes nas regiões sul e sudeste do país. Só na região de Maringá são mais de 1,8 mil pontos de coleta entre hospitais, clínicas, laboratórios e farmácias.“Por causa do perigo, é necessário que os resíduos de saúde sejam encaminhados para tratamento e disposição final ambientalmente adequados, de modo a preservar a saúde pública e o ambiente envolvido”, destaca a engenheira ambiental, civil e de segurança do trabalho da Servioeste, Ana Cláudia Milani Solvalagem.A empresa presta serviços de coleta, transporte, tratamento e destinação para garantir que os resíduos de saúde não acabem em rios e plantações. O serviço é prestado tanto na modalidade de contrato como de coleta emergencial. Os resíduos de saúde são divididos em cinco grupos, sendo que dois não são coletados pela Servioeste. A empresa não recolhe resíduos radioativos e nem aqueles provenientes de áreas administrativas, sanitários, cozinha e sala de espera.Estão na lista do grupo catarinense as substâncias infectantes como bolsas de sangue, amostras de laboratório, luvas, algodão, vacinas, peças anatômicas de animais e humanas e até órgãos. Também são recolhidos produtos químicos que apresentam periculosidade à saúde pública ou ao meio ambiente (medicamentos, reagentes, reveladores e fixadores para revelação de Raio-X) e os perfurantes (agulhas, lâminas de bisturi, ampolas, entre outros).Em média, são recolhidas 200 toneladas por mês, que inicialmente vão para a Central de Tratamento de Resíduos de Saúde que fica em Maringá. Lá, dependendo da classificação, são tratados por autoclavagem – sistema de tratamento onde a periculosidade é eliminada através da esterilização – ou incinerados sob temperaturas de 800°C a 1.200°C. Depois os resíduos autoclavados são encaminhados a um aterro terceirizado. Já os incineráveis são levados para a matriz, em Chapecó, e lá dispostos em aterro próprio. “Possuímos coleta informatizada, onde após a pesagem, o cliente recebe um comprovante com a quantidade de resíduo coletado por grupo. Além disso, fica disponível em nosso site, em acesso restrito, o laudo mensal de destinação dos resíduos de cada gerador. Com o sistema de coleta informatizada é garantida a confiabilidade e qualidade nos serviços”, ressalta a engenheira, que trabalha na unidade maringaense da empresa.
Coleta seletiva gera ganho ambiental e socialDe janeiro a setembro foram recolhidas mais de 3,8 mil toneladas de recicláveis em Maringá. O volume é resultado dos investimentos da administração pública para ampliação do serviço de coleta seletiva por meio da contratação de mais de dez caminhões este ano.Atualmente, 15 caminhões percorrem todos os bairros da cidade recolhendo o material que, na sequência, é destinado para sete cooperativas que empregam cerca de 150 catadores. Lá é feita a primeira triagem e a separação de plásticos, papel, papelão alumínio, vidros, entre outros. Depois, o que era ‘lixo’ ganha novo destino. “Os empreendimentos de catadores legalmente formalizados são de extrema importância ao meio ambiente. As cooperativas fazem com que aumente a vida útil do aterro sanitário, pois o material que seria aterrado, demorando anos para se deteriorar, é separado e transformado em matériaprima ao retornar à indústria”, destaca a diretora de coleta seletiva da prefeitura de Maringá, Aline Cristina Ramos Gava. Ela também reforça o ganho social, uma vez que a coleta seletiva gera renda média de R$ 900 até R$ 2 mil aos cooperados. “Essas cooperativas proporcionam aos trabalhadores condições dignas de trabalho, valorizando o ser humano. Com o trabalho em conjunto, eles acabam trocando experiências de vida, auxiliando um ao outro”, completa Aline.